Federação de Karatê e Kombate do RN

O Karatê-Do

 

KARATE-DO - UMA DAS HISTÓRIAS

(Preâmbulo do Livro "O Samurai Olvidado - Biografia de Mestre Tetsuji Murakami" publicado em 2006)

Imaginemos um homem eterno, com uma memória perfeita, vindo não se sabe de onde.

Chamemos-lhe (porque não?) Bodhidarma. Não, não estamos na Índia. Estamos hoje e aqui,num pequeno dojo de uma qualquer sociedade recreativa.

 

O homem é, segundo se diz, “Mestre de Artes Marciais”, em especial o karate. Será?...

Um dia, o seu único aluno decide pedir-lhe que lhe descreva todo o percurso daquilo a que chamamos hoje “Karate-do”. Ele decide aceitar mas com uma condição: o aluno terá de treinar um ano inteiro, de Janeiro a Dezembro, todos os dias, sem qualquer falha nem interrupção. Se assim fizer, no final de cada aula sentar-se-ão ambos no centro do dojo e o Mestre contar-lhe-á uma pequena parte da história. O aluno aceita o desafio com entusiasmo.

 

 

Chegado o primeiro dia de Janeiro, o Mestre começa por alertar que não lhe vai contar a história de todas as Artes Marciais - tarefa certamente interminável - mas sim e apenas aquelas que se referem ao Do... O aluno fica sem perceber o que ele quer realmente dizer, mas decide não o interromper logo na primeira descrição que, ao que parece, se refere a uma forma de luta indígena de certa região da Índia, há mais de 1500 anos.

No primeiro dia da semana seguinte a descrição inicia-se com uma fantástica viagem através dos Himalaias até à corte de Wu o imperador de Liang, em Cantão na China. Logo de seguida a acção transfere-se para um mosteiro mais a Norte na província de Honan, do imperador Hsiao Ming. O nome desse mosteiro parece soar como Shaolin. Tanto quanto o aluno julga entender, após um correcto adestramento físico e mental, os pacíficos monges budistas que desse mosteiro partem, em pregação, acabam por se tornar conhecidos pela eficácia dos seus punhos.

 

 

Os dias passam, as semanas também e depois os meses. Metodicamente, o Mestre vai ilustrando a transmutação dessa técnica com descrições das características peculiares das formas de luta de povos diversos da China e depois da Coreia. Há um nome, em particular, que ele repete várias vezes e que soa como Shang Wu, e que, segundo ele, estaria na origem de outras artes de nomes tão esquisitos como: T'ai Ch'i e Pa-kua.

Com o início da Primavera, tendo-se já estabelecido uma relação de amizade e respeito entre professor e aluno, este pergunta-lhe se, em vez do nome Bodhidarma que se torna extremamente difícil de pronunciar, o professor não se importaria que ele usasse um diminuitivo... "Podes chamar-me Darma, que é mais simples.", responde, com um sorriso, "Afinal, até era assim que os Ryukyu's me chamavam..." E, adivinhando a pergunta do aluno passa a explicar: "Ryukyu era um pequeno arquipélago independente, a Sul do Japão, coincidente com o que se chama hoje Prefeitura de Okinawa. A região estava separada em três reinos - Chuzan, Nanzan e Hokuzan - desde há muito envolvidos em guerra civil".

 

 

Darma vai prosseguindo a descrição da vida conturbada dos Ryukyu's, nessa época, perpassada por combates de extrema violência e crueldade. Por vários dias o aluno sai do dojo com as pernas a tremer, tal é o realismo das descrições. Chega um dia, porém, em que Darma refere o aparecimento de um certo rei Sho-Hashi, de Chuzan, que acaba por dominar os outros dois países, impondo em todo o território Ryukyu um regime feudal onde o uso de armas passa a ser reservado às classes de nível superior.

 

 

Chega o Verão. Os quentes fins de tarde, após o treino, são de grande serenidade. Durante os meses de Julho, Agosto e também por Setembro fora, o Mestre entrega-se à descrição da vida calma dos camponeses dos Ryukyu's. As referências às Artes Marciais são raras e subtis. Ali é um humilde camponês que, provocado por dois samurais fortemente armados, recorre a um pequeno malho de descasque do arroz, conseguindo matar um deles e ferir fortemente o outro. Todas as tentativas para encontrá-lo são infrutíferas... Acolá, um homem já idoso acorre em defesa de um amigo e consegue defender-se habilmente da terrível lâmina de um sabre, com o cabo de madeira de uma pequena mó. Levado à presença das autoridades não se consegue provar que tenha feito uso de armas...

Num dos regressos a casa depois da costumeira aula, o aluno desvia-se um pouco do caminho habitual procurando a frescura de um pequeno lago. Passeando o olhar por uns pequenos remoinhos que agitam a água, interroga-se: "O que será que vive por baixo do espelho ?"

E eis que inesperadamente, já no final de Setembro, Darma deixa o seu jovem amigo sem pinta de sangue com a mais viva e sentida das descrições de batalha que jamais ouvira. Trata-se da invasão dos Ryukyu's pelo Shimazu - a força de guerra do clã Satsuma que domina já um vasto território em Kyu-Shu e que decide agora anexar as ilhas mais a Sul. Uma data fica a soar - 1609 - ano do assalto frontal dos Samurais à porta de Naha. A feroz resistência dos locais surpreende a poderosíssima força que há pouco chegara a fazer tremer a própria autoridade imperial. O ataque frontal à porta de Naha é prontamente repelido. Mas o desequilíbrio de forças é tremendo, nem todas as entradas podem ser defendidas, Unten é o ponto fraco por onde o Shimazu consegue penetrar e os Ryukyu's em breve ficam à mercê dos Satsuma. A interdição do uso de armas é agora reforçada passando a aplicar-se a toda a população local.

 

 

Cai o Outono. A caminho do dojo o aluno é de novo atraído pela tonalidade cinzenta da superfície do lago, agora batida pelo vento. Pela melancolia das palavras do Mestre descrevendo a profunda tristeza dos Ryukyu's, perpassa uma agitação crescente. Em reacção à opressão dos suseranos Satsuma reforçam-se as ligações tradicionais ao continente e, por detrás de aparentes missões de intercâmbio cultural, esconde-se a aprendizagem de secretas formas de defesa sem armas, desenvolvidas pelos monges de Shaolin e sucessivamente transformadas e melhoradas por gerações e gerações de Mestres chineses. Em Okinawa essas "formas", são então transmitidas no mais rigoroso segredo a um círculo muito restrito de alunos. Estes, por seu lado, como artífices diligentes, tratam de as refinar e aperfeiçoar. Aos rumores da existência de uma tal "mão de Shuri" e "mão de Naha", que se agrupavam no chamado Okinawa-te, ou "mão de Okinawa", juntava-se agora uma misteriosa To-de, associada às formas chinesas. Mas, por mais estratagemas que inventem, os espiões do clã Satsuma não logram penetrar no hermetismo de tais práticas.

 

 

Ao som das palavras do Mestre os anos voam lestos como folhas que o vento frio volteia, mas um ano sobressai – 1853 – quando uma enorme força armada americana reclama entrada no Castelo de Shuri. Os guarda-costas do rei que, durante séculos tinham ganhado a justa fama de conseguir destroçar em poucos segundos qualquer grupo de assaltantes armado que ousasse penetrar as muralhas do castelo, preparam-se para o pior... Os ecos das palavras e traduções não rompem o enorme silêncio que pesa nesse breve momento em que os dois hemisférios se tocam. Nos dias seguintes ao rei pouco mais resta que suicidar-se. Mal sabem os seus carrascos passivos que essa morte prenuncia a queda em cascata do universo samurai.

 

 

Certo dia, no final de um treino aparentemente igual a tantos outros, o Mestre informa: "Hoje não haverá palestra!". O discípulo não compreende e começa a esboçar um protesto: "Mas Darma...". Este porém interrompe-o bruscamente dizendo-lhe: "O meu nome a partir de agora passa a ser Shoto", se me chamares de outra forma não te responderei". Em seguida assegura-se de que a porta do dojo está fechada, pede-lhe que tome muita atenção aos nomes que vai ouvir e que, sobretudo, não os confunda. Nesse dia não se sentam no centro do dojo, como habitualmente, mas sim um em cada extremo da sala. Durante largos minutos permanecem, frente a frente, contemplando-se em silêncio. Então, o Mestre levanta-se e diz: "Tekki-Shodan". Executa uma série de impressionantes movimentos plenos de energia, curtos e fortes, deslocando-se para um e outro lado, mas sem avançar. De seguida volta a sentar-se e a aula termina assim. Despedem-se com uma saudação, sem uma palavra.

 

 

O aluno interroga-se acerca do significado desta brusca mudança de atitude e também da função daqueles estranhos movimentos. No entanto, em quase todos eles, julga encontrar longínquas semelhanças com os quatro ou cinco movimentos básicos que, ao longo de todo o ano, lhe têm vindo a ser ensinados e é com grande curiosidade que se dirige para o dojo. Nos dois dias seguintes, quer o nome, quer o esquema dos movimentos, apresentam notórias parecenças com os do primeiro dia: "Tekki-Niddan, Tekki-Sandan". No quarto dia o Mestre executa todos os três, um a seguir ao outro informando no final que estas "formas", que ele designa genericamente por kata's, pertencem à escola Shorei-ryu

No dia subsequente, a apresentação continua, com uma kata denominada "Taikyoku Shodan". O aluno fica contentíssimo, reconhecendo de imediato todos os movimentos. As kata's dos dias seguintes: "Taikyoku Nidan", "Taikyoku Sandan" apresentam-se como pequenas variações da primeira, incorporando igualmente técnicas que ele conhece muito bem. Mas, na essência, em nada diferem da primeira Taikyoku.

 

 

De novo a caminho de casa presta pouca atenção à chuva e ao frio do Inverno que se aproxima. O que o intriga são as profundas diferenças entre estes dois grupos de kata's. E reflecte de si para si: "Os movimentos das taikyoku são leves, rápidos e profundos; os outros, por contraste, são como o próprio nome tekki, mais forte, mais curto, mais pesado. As deslocações em todas as direcções das taikyoku's fazem lembrar o voo livre de uma ave, sem limites; nas tekki's, porém, as deslocações são muito limitadas como se o movimento estivesse restrito a uma direcção. Será que as taikyoku's são originárias de uma outra escola, um outro ryu ?"

Confirmando a sua suspeita, no final do treino seguinte o Mestre revela-lhe que, de facto, as três Taikyoku foram uma criação sua inspirados nas Kata da escola Shorin-ryu.

Nesse momento, o Mestre apercebe-se, pelo brilho dos olhos do seu aluno, de que ele compreendeu a mensagem. Abraça-o com amizade, dizendo-lhe que, daí em diante, quando outras kata's lhe forem apresentadas, não precisa de se preocupar em decorar-lhes os nomes, apenas procure sentir o timbre dos movimentos e identificar a que escola pertencem.

 

 

O dia seguinte é o primeiro de Dezembro. No fim da aula professor e aluno voltam a sentar-se no centro do dojo. Shoto explica que chegou a altura da divulgação, da abertura para o exterior: "O mundo acha que tudo tem que ter um nome, por isso vamos chamar-lhe, Karate-do. Abre então de par em par a porta do dojo e deixa entrar um bando de miúdos que, já há alguns instantes se acumulavam ruidosamente junto à entrada, espreitando. Ao princípio as crianças invadem caoticamente todo a sala, observando com curiosidade todos os detalhes, mexendo nos cintos e rindo baixinho dos trajes esquisitos dos dois homens. Cria-se uma enorme confusão e o aluno faz um ar carrancudo. Shoto, por seu lado parece felicíssimo, deixando-se rodear pelas crianças. Aos poucos, porém, vai-os encaminhando para um dos lados da sala e, então, num repente, com uma voz forte e determinada manda-os alinhar, pondo o seu aluno à direita. Os miúdos, apanhados de surpresa pela súbita mudança, obedecem de imediato, ficando em quase completo silêncio.

 

 

O Mestre demonstra então uma série de kata's, - Bassai, Kanku, Empi, Gankaku. E depois, após uma pausa, Jutte, Hangetsu, Jion. O aluno reconhece facilmente o primeiro grupo como Shorin-ryu, e o segundo como Shorei-ryu. Os ávidos olhos das crianças, porém, são atraídos apenas pelo espectáculo, riem e aplaudem os saltos e pontapés e, quando os movimentos são lentos e concentrados, suspendem-se na respiração profunda do Mestre. No final da aula quase todos pedem a Shoto que lhes ensine "Karate" (como crianças que são, esquecem o do) e, para desespero do seu aluno, o Mestre aceita. Daí para a frente as aulas enchem-se de crianças traquinas que a todo o momento pedem: "Shoto, faz aquele salto ! Shoto, ensina-nos outro truque ! Shoto, podemos fazer um jogo a ver quem ganha ?". No final de cada aula, depois de todos sairem, continuam a sentar-se no centro do dojo, mas são os protestos do aluno que se fazem ouvir: "Não compreendo. Você prometeu-me que me daria aulas durante um ano..." - E estou a cumprir. "Mas disse-me que me contaria toda a história do karate-do..." - E estou a contar. "Mas as crianças perturbam o nosso trabalho" - Meu caro, se eu as mandasse embora então sim, estaria a falsear tudo. "Como assim ?" - Assim, como assim, eles fazem parte do caminho, fazem parte da história...

Decorre o último dia do mês de Dezembro. Está muito frio. Em cada um dos últimos dias o caminho para o dojo pareceu-lhe mais e mais longo. Sente-se doente, doem-lhe as pernas, todo o corpo lhe dói. Enquanto caminha penosamente encontra uma vez mais o velho lago: "Já não há nada por baixo do gelo, está tudo morto", pensa, e uma lágrima escorre-lhe pela face.

 

 

Contudo, ao chegar à porta do dojo algo de insólito se passa. Nem gritaria, nem correrias... Onde estão as crianças ? Espreita pela porta e vê um grande grupo de pessoas em kimono. Os olhares dirigem-se para ele e... os rostos são-lhe estranhamente familiares. Não sabe o que há-de dizer: "Hum... Boa tarde, o meu nome é..." - Olá, Mestre. Chegou atrasado hoje. Estamos há que tempos à espera.

Como um autómato dirige-se para o vestiário e pega no kimono. Mete de novo a mão direita no saco para retirar o cinto branco mas o que sai é um cinto de côr preta. Larga-o bruscamente e esfrega a mão como se o cinto a tivesse queimado. Repara então que as mãos, as suas próprias mãos estão diferentes, mais ásperas mais... velhas. Prostrado, deixa-se caír sobre o banco, apoia os cotovelos no colo e tapa os olhos, mas... no rosto sente estranhas rugas. Tenta, controlar-se. Recorda o ensinamento do Mestre e endireita as costas. O seu Mestre...Onde estará ? "Darma", "Shoto", nomes que lhe soam distantes, nomes longínquos da sua juventude.

 

 

Repentinamente levanta-se, como se tivesse apanhado uma bofetada. Veste o kimono, coloca o cinto negro. Vai para o dojo. Atrás de si está a foto de um homem sentado serenamente na areia de uma praia. Senta-se. Os alunos imitam-no. Viram-se todos para a foto. Ao fundo as águas, já não do lago, mas do próprio mar, ondulam vivas. Quando se curva para a saudação apenas um nome invade a sua memória: Murakami.

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